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Bacalhau: o patrimônio norueguês e presença obrigatória na Páscoa

Além de paisagens deslumbrantes, a Noruega é berço de um dos peixes mais presentes nos grandes encontros ao redor da mesa

A paisagem dominada pelo branco da neve nas montanhas e pelo azul cristalino do mar serve de colírio aos olhos, enquanto um vento frio e úmido toca a pele. Postais de árvores secas em um infinito coberto pela nevasca que caíra na noite anterior transformam as janelas do carro em quadros das estradas do país. Bastam algumas horas na Noruega para entender o motivo de ser ali um dos países mais felizes do mundo – apesar da insistência do termômetro em se manter abaixo de zero. Compromisso com o meio ambiente, ruas limpas, povo educado e boa estrutura pública são apenas alguns dos fatores.

Quando o foco vira a gastronomia, então, é difícil não ter os pescados daquele país como referência. O mercado de peixes é o terceiro maior para a economia nacional, ficando atrás apenas dos setores de óleo e gasolina. Ao ultrapassarmos as fronteiras, os noruegueses perdem somente para a China quando o assunto é a exportação do alimento que vem das águas, com destaque para o salmão e o bacalhau. E, por fim, dos principais destinos do bacalhau da Noruega, figuram no topo Brasil, Portugal e República Dominicana.

Do mar até o Brasil

É só jogar o anzol sem isca nem nada, balançar a linha e esperar poucos minutos para senti-la ser puxada. Robusto, o bacalhau exige força para tirar do mar seus mais de 6 quilos. O peixe, que vive no Polo Norte, desce para a região de Lofoten, na Noruega, durante o inverno, nos primeiros meses do ano, em busca de temperatura mais agradável. Quer dizer… agradável para ele. Isso porque o termômetro do mar nessa época varia de zero a 4 graus, e uma pessoa não sobreviveria imersa por mais de 5 minutos.

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A facilidade de pescar a poucos quilômetros da costa faz com que os pescadores não precisem passar a noite em alto mar. Além disso, garante a chegada da matéria-prima ainda fresca à terra firme. Uma pequena parte é destinada ao consumo local, que varia entre bacalhau fresco, apenas salgado ou salgado e seco, tal qual conhecemos aqui no Brasil.

Com população de pouco mais de 5 milhões de habitantes (quase a metade da capital paulista), a Noruega consome somente 5% da produção, enquanto o restante é exportado. Em 24 horas, o peixe fresco chega a qualquer país da Europa.

Ainda na região de Lofoten, o bacalhau é levado a esteiras para a retirada das espinhas. Essa é uma das poucas máquinas utilizadas em todo o processo de salga e secagem. Depois, o peixe tem separados o fígado, as ovas e a cabeça. O fígado é usado para a extração do óleo. As ovas são transformadas em caviar ou bottarga. A cabeça é seca e exportada para países da África, como a Nigéria, e vira caldo, pirão etc.. Ou seja, é por isso que o bacalhau chega ao nosso mercado sem ela.

O peixe – separado em corpo e cabeça – é seco em hjell (estrutura ao ar livre que funciona como um varal).

Aqui cabe um adendo. Antes de ser levada para a secagem, a cabeça tem removida a língua, como é chamada por lá (ou papada como é conhecida a iguaria em outros locais). O corte é feito por adolescentes, que ficam integralmente com o dinheiro arrecadado. Eles têm esquema flexível de trabalho, podendo estipular o número de horas que querem e precisam trabalhar. No dia da visita da reportagem, a jovem Inhe, de 17 anos, fazia a tarefa. Ela contou que exerce essa função desde os 8 anos. E, hoje, corta cerca de 50 quilos de carne por dia, o equivalente a 1.500 línguas. Tanta dedicação tem motivo: seu dinheiro será utilizado para custear os estudos em astrofísica, em Oslo.

Tipos de bacalhau e seu uso na cozinha

  • Zarbo – É o mais fibroso de todos e vai bem em caldos e pirão. Entre os preparos típicos da Noruega, ele aparece em pedaços no reconfortante creme de bacalhau, feito com nata e vinho branco.
  • Saithe – O sabor desse bacalhau é mais acentuado que dos demais. Além disso, sua carne desfia facilmente, sendo ideal para preparar bolinhos e recheios para tortas, pães. Quer variar? Dessalgue normalmente esse bacalhau e prepare um ceviche, ao adicionar-lhe sucos cítricos, cebola-roxa e outros temperos de sua preferência. É a variedade mais exportada para o Brasil.
  • Gadus morhua – Batizado como o autêntico bacalhau da Noruega. Tem a carne mais suculenta, que despetala depois de cozida. O segredo para seu preparo é a cocção em baixa temperatura até que as camadas comecem a se soltar. Ao preparar qualquer posta de bacalhau, vale ter em mente que esse é um peixe de águas frias e, portanto, não se dá bem com calor. Seguindo a influência portuguesa, o lombo do Gadus costuma ser acompanhado de batata, cenoura, vagem, cebola e bastante azeite.
  • Ling – É o que tem o filé mais estreito. Vai bem em cozidos ou em recheios variados.
  • Gadus macrocephalus – Essa espécie é pescada no Pacífico. Sua carne é mais clara, mais fibrosa e não se desmancha em lascas.

De Lofoten a Älesund

É em Älesund que a maior parte das fábricas está localizada. São dois dias de barco de Lofoten até o peixe, agora congelado, chegar à cidade que fica ao sul do país. Ao ser recebido, ele é descongelado em tanques com água do mar em temperatura de zero a 4 graus (a mesma de seu hábitat). Isso permite a manutenção de sabor, textura e aroma da carne.

Uma fábrica chega a utilizar mais de 20 toneladas de sal por dia.

Uma nova e minuciosa limpeza é feita, portanto, de modo que sua coloração fique inteiramente branca, sem marcas de sangue ou qualquer outra. Na sequência, vai para a salmoura concentrada por, aproximadamente, duas semanas. Depois é lavado e disposto em paletes intercaladamente: uma camada de sal, outra de peixe. O peso da pilha ajudará na desidratação da carne que fica embaixo. Por isso, há rodízio entre os peixes para que todos sofram a mesma pressão e atinjam resultado semelhante. Por fim, o bacalhau é seco em uma câmara.

O peixe perde cerca de 40% de seu peso durante o processo de salga e secagem.

As análises visual e da textura são feitas uma por uma e determinam se o produto está, finalmente, pronto. “Não há uma regra exata. Sabemos ao olhar a firmeza do peixe, ao pressionar a carne.”, diz Johannes Stette Høyberg, da Jacobs Bjørge. Todo o processo dura pelo menos seis semanas, mas pode ser estendido conforme a demanda do mercado. Para chegar ao Brasil, a viagem demora 40 dias e, por isso, o peixe que chegará à mesa no Natal começa a ser preparado em meados do ano.

Compromisso com a sustentabilidade

Quem vê a fartura de bacalhau no mar norueguês logo é assombrado pela dúvida em relação ao futuro da espécie. Como o peixe só aparece nos meses mais gelados do ano, não há necessidade de determinar um período de defeso. Porém, nem por isso a Noruega deixa de fiscalizar o trabalho dos pescadores. Cada trabalhador recebe um número máximo que pode pescar. Esse valor é determinado de acordo com o tamanho do barco e a quantidade de pessoas que ali trabalham. Sendo que, quando o limite é atingido, uma bandeira é içada informando a todos que os trabalhos estão encerrados naquela temporada.

Tudo se aproveita do bacalhau. A pele pode virar pururuca, as espinhas e os ossos dão sabor a caldos, a barriga é ótima para bolinhos, e o lombo é servido em postas. A língua e a bochecha são consideradas iguarias, assim como as ovas, que podem ser transformadas em bottarga ou caviar. Do fígado, é extraído o óleo. A cabeça vai para países da África, como a Nigéria, e os miúdos, para a Ásia.

Para definir esses números, usam-se como base os dados divulgados anualmente pelo Conselho Internacional para a Exploração do Mar (Ices). É ele que determina as cotas de pesca de cada espécie marinha. Em 2016, por exemplo, o número permitido para o bacalhau era de 894.000 toneladas, divididas entre Noruega e Rússia. Além disso, o país nórdico criou um sistema de rastreamento para garantir o futuro do bacalhau. Assim, controla a natalidade e traça metas para que os estoques sigam renovados e em bons níveis.

Onde comer na Noruega

O bacalhau ganha diferentes formas à mesa norueguesa. Quando fresco, pode ser acompanhado de vegetais cozidos. Se salgado e seco, é escoltado também por bastante azeite e bacon. Enquanto a língua é servida como petisco, ao ser empanada e frita.

Lofotmat

Da cozinha comandada pela chef Siv Hilde Lillehaug, no Lofotmat (@lofotmat), saem receitas que ela aprendeu com a mãe e com a avó, caso do caviar de bacalhau com sabor defumado. O espaço nasceu em 2010, como uma delicatéssen. Mas há quatro anos compõe a lista de cinco restaurantes da pequena cidade de Henningsvaer. O menu é sazonal, porém se você estiver com sorte, encontrará o excelente Gadus morhua fresco acompanhado de molho de cenoura, purê de batata e bottarga. “O peixe é cozido a no máximo 48 graus, assim ele fica macio e desmanchando em lascas.”, diz a cozinheira. Não dispense o pão de fermentação natural do couvert. Ele é preparado todas as manhãs pelo marido de Siv Hilde.

Bacalao

Em Svolvaer, o restaurante Bacalao (bacalaobar.no) serve uma receita autêntica norueguesa, mas que não esconde a influência da cozinha portuguesa. É o guisado de bacalhau salgado e seco com tomate, azeitonas, azeite e bastante pimenta-preta.

Lofoten Food Studio

A pouca distância dali, em Ballstad, o chef Roy Magne Berglund deu vida a um velho sonho: receber pequenos grupos na própria cozinha. No anexo construído ao lado de sua casa, o Lofoten Food Studio (lofotenfoodstudio.no), Roy faz o papel de sommelier, garçom e, claro, cozinheiro. Espere por pratos contemporâneos, autorais e surpreendentes. É necessário fazer reserva.

Klippfiskakademiet

Seguindo o mesmo conceito, a (klippfiskakademiet.no) está localizada ao lado do aquáriKlippfiskakademiet o de Älesund, o Atlantic Sea Park. Sua programação inclui aulas de culinária e cooking shows diversos. O Bacalao Tasting Experience é ideal para quem quer conhecer mais sobre o pescado e ter inspirações na hora de cozinhá-lo.

Um dos preparos mais interessantes servidos ali foi feito com as aparas ainda salgadas e secas do bacalhau. Elas foram processadas e fritas até ficar bem secas. Depois, finalizaram e deram sabor à manteiga do couvert. Outra ideia é processar ainda mais as aparas até que fiquem parecendo farinha. Então, é só utilizar em diferentes receitas esse “pó de bacalhau salgado e seco” em vez do sal.

*A reportagem viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca

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Isabel Raia

Na equipe desde 2014, Isabel Raia é editora de Prazeres da Mesa. É formada em jornalismo, pela PUC-SP e pela Universidad de Castilla-La Mancha (na Espanha), e pós-graduada em Cozinha Brasileira, pelo Senac. Isabel tem na gastronomia uma de suas grandes paixões (principalmente se a receita incluir queijo ou chocolate).

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